CRÔNICAS E CONTOS (Borges e Garcia)
AS SOMBRAS DE UM MORTO
Antes
foi assim.
“Parece que meu cérebro está
morrendo.
Vejo as palavras à minha
frente, vejo o texto, mas não consigo organizá-lo. A imagem é-me toda mostrada,
mas não lhe arranjo as posições. As cores me ferem a vista em minha mais íntima
percepção. Quando digo vermelho, não é isso que quero dizer. Foge-me o delinear
de uma estória. Não há encadeamento. Não me concentro. Esqueço-o ao meio e
perco sua lógica ou a falta de lógica.
Olho as pessoas. Não lhes sei
os nomes, quando recordo-me destes, não lembro o relacionamento que comigo
existe ou existiu.
Mas ao inverso recordo textos,
regras que estudei no Latim há mais de sessenta anos e, às vezes, as uso.
Convivo com Aristótales, Sócrates, Ulpiano, Santo Agostinho, Getúlio Vargas como se fossem meus vizinhos, mas não conheço
um só de meus vizinhos.
Demoro a lembrar um nome, e
termino por não lembrar. Distraído, confundo o nome das pessoas íntimas.
Imagino um enredo seja para o
que for, perco-o no meio ou minhas impressões se esgotam, quando vou
relatá-los. Os sentimentos escapam.
Datilógrafo há mais de
cinquenta anos e, às vezes, perco as letras no teclado. Não as acho.
Coloco objetos em locais
inteiramente improváveis. Procuro-os e não os acho. Quando encontro não me
lembro de tê-los colocado ali.
As tomadas de luz as perco
pelos quartos. Procura-as, mas não as encontro. Marco-as por escrito,
especificando com bilhetes os locais, os quais, agora, já vejo com quase
desespero que esqueço os quartos. Algumas vezes saio pela cidade procurando
comprar algo específico. Acho a rua, mas não lembro o que fui fazer lá”.
Agora
é assim.
O Alzheimer extraiu-lhe o
cérebro.
Tudo terminado.
É um vegetal.
J. R. M. Garcia.
<martinsegarcia@uol.com.br>