terça-feira, 15 de dezembro de 2015

CRÔNICAS E CONTOS (Borges e Garcia) = AS SOMBRAS DE UM MORTO =

CRÔNICAS E CONTOS (Borges e Garcia)

AS  SOMBRAS DE UM MORTO 

Antes foi assim.
“Parece que meu cérebro está morrendo.
Vejo as palavras à minha frente, vejo o texto, mas não consigo organizá-lo. A imagem é-me toda mostrada, mas não lhe arranjo as posições. As cores me ferem a vista em minha mais íntima percepção. Quando digo vermelho, não é isso que quero dizer. Foge-me o delinear de uma estória. Não há encadeamento. Não me concentro. Esqueço-o ao meio e perco sua lógica ou a falta de lógica.
Olho as pessoas. Não lhes sei os nomes, quando recordo-me destes, não lembro o relacionamento que comigo existe ou existiu.
Mas ao inverso recordo textos, regras que estudei no Latim há mais de sessenta anos e, às vezes, as uso. Convivo com Aristótales, Sócrates, Ulpiano, Santo Agostinho, Getúlio Vargas  como se fossem meus vizinhos, mas não conheço um só de meus vizinhos.
Demoro a lembrar um nome, e termino por não lembrar. Distraído, confundo o nome das pessoas íntimas.
Imagino um enredo seja para o que for, perco-o no meio ou minhas impressões se esgotam, quando vou relatá-los. Os sentimentos escapam.
Datilógrafo há mais de cinquenta anos e, às vezes, perco as letras no teclado. Não as acho.
Coloco objetos em locais inteiramente improváveis. Procuro-os e não os acho. Quando encontro não me lembro de tê-los colocado ali.
As tomadas de luz as perco pelos quartos. Procura-as, mas não as encontro. Marco-as por escrito, especificando com bilhetes os locais, os quais, agora, já vejo com quase desespero que esqueço os quartos. Algumas vezes saio pela cidade procurando comprar algo específico. Acho a rua, mas não lembro o que fui fazer lá”.
Agora é assim.
         O Alzheimer extraiu-lhe o cérebro.
         Tudo terminado.
         É um vegetal.
         J. R. M. Garcia.
<martinsegarcia@uol.com.br>