quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

CRÔNICAS E CONTOS (Borges e Garcia) _= COICE DE MULA =

CRÔNICAS E CONTOS (Borges e Garcia)

COICE  DE  MULA


COICE   DE   MULA

Há muito tempo, ainda era vivo Leonel Brizola e David Nasser. O primeiro político. O segundo jornalista. Ambos inimigos acirrados. Um gaúcho, Brisola e, o outro, carioca, David, cronista mais lido  da principal revista do país.
“O CRUZEIRO” era uma revista de nome nacional. Aquela que ia nas asas da Varig aos rincões mais remotos do país. Ainda um Brasil ingênuo, onde as senhoras não usavam biquíni e muitas nem calça comprida. Eram saias rodadas na maioria até acima do joelho - no meio da canela. Não existiam trombadinhas, nem fome, nem estas coisas horríveis que a gente vê. Um Brasil onde o furto era modestos e discretos, sem o descaramento e cinismo atual.
A vida política, social e econômica  era essencialmente em São Paulo e no Rio. Lá era o “jet set” como diziam. Brasília nem era ainda sonhada.
Tanto São Paulo quando o Rio somente tinha o Santos Dumont e o Congonhas. Se quisessem encontrar algum figurão era ali onde trafegavam os aviões  Lockheed L-188 Electra. Ótimos aviões. O Santos Dumont era menorzinho, com uma pista que tanto no pouso quanto na decolagem exigiam atenção por parte dos pilotos e tripulação. Não existia ao acréscimo que hoje lhe foi feito, nem a ponte Rio-Niteroi existia. A ponte aérea Rio-São Paulo era o mimo. Pessoas trabalhavam em S.Paulo e Rio eram consideradas chiques.
Bons tempos aqueles!
Aos fatos.
Davi Nasser, escreveu um pesado artigo contra Leonel Brisola. Coisa de parar a imprensa. Assunto escabroso, na linguagem mais pesada que se usava na época. Eu não me lembro, mas era acachapante.
Brisola jurou que, quando  encontrasse Nasser, fosse onde fosse, dar-lhe-ia um murro igualmente de estourar os miolos.
        Passados  menos de um mês Brisola vê Nasser no meio da multidão de embarque do Santos Dumont. Rapidamente, sem diálogo, sem uma troca de xingamentos vai rumo a David e, com toda força, estoura-lhe um murro no rosto onde dois dentes caem-lhe da boca e ele desmaia. Naquele tempo os homens eram ainda assim. Restava um pouco de virilidade. Nasser foi hospitalizado e Brizola, fagueiro e feliz foi para o Rio Grande.
Nasser na próxima sexta feira escreve um artigo pior ainda sobre Brizola com o título COICE DE MULA e publica. Mas a raiva de Leonel já se havia desfeito. Consta que David, até o fim da vida, guardou os sinais do “coice de mula” no rosto.
Este nome do artigo fez-me lembrar de outros tempos, vinte anos atrás.
Também levei um coice de mula sem aspas. Real. Sem pena.
Aproveitando a paciência do leitor vou contar.
Tendo comprado uma propriedade rural em uma região serrana, entrei logo em discussão com um dos vizinhos. Ele queria, na marcação imprecisa, que a fazenda dele chegasse até uma linda cachoeira no meio de minha propriedade.
Mas, para tirar dúvidas, fomos lá no local. 

ESTA  A  CACHOEIRA  DA  DISCÓRDIA

Compensava “brigar”.
Ele sugeriu que subíssemos a serra. Ele a cavalo e eu a pé.
Não desisti. Não podia desistir:
--Vamos.
Ele cavalgando uma mula ajaezada e eu a pé.
Eu já sabia, tinha experiência de outras empreitadas, de ir segurando a calda do animal. Já utilizara o método em Goiás.
E assim fomos. O animal com ele montado, eu segurando firme na calda, sendo arrastado aos trancos e barrancos pela forte mula.
Uma hora  - talvez um pouco menos -  e chegamos ao pico de onde víamos  toda fazenda em baixo.
A mula, que na subida não reagira, pois se o fizesse ela mesma cairia encosta abaixo, quando chegou no plano dá um coice que pegou em minha perna na parte mais alta. Caí longe. O coice pegou na coxa, próximo a minha genitália. Um local perigoso, mas firme. Na canela quebrava-me a perna, no estômago moeria as entranhas, no peito afundaria minha caixa torácica.
Não conversamos mais. A cachoeira era minha e nem o vizinho falou mais disso. Daí para diante a conversa seria a bala. Desci só, em silêncio, mancando da serra.
Até hoje tenho a marca do coice.
A vida é mesmo assim. Alguns por muitos, outros por pouco, mas sempre levam seus coices.
         J. R. M. Garcia
<martinsegarcia@uol.com.br>