CRÔNICAS E CONTOS (Borges e Garcia)
COICE DE MULA
COICE DE MULA
Há
muito tempo, ainda era vivo Leonel Brizola e David Nasser. O primeiro político.
O segundo jornalista. Ambos inimigos acirrados. Um gaúcho, Brisola e, o outro,
carioca, David, cronista mais lido da
principal revista do país.
“O
CRUZEIRO” era uma revista de nome nacional. Aquela que ia nas asas da Varig aos
rincões mais remotos do país. Ainda um Brasil ingênuo, onde as senhoras não
usavam biquíni e muitas nem calça comprida. Eram saias rodadas na maioria até
acima do joelho - no meio da canela. Não existiam trombadinhas, nem fome, nem
estas coisas horríveis que a gente vê. Um Brasil onde o furto era modestos e
discretos, sem o descaramento e cinismo atual.
A
vida política, social e econômica era
essencialmente em São Paulo e no Rio. Lá era o “jet set” como diziam. Brasília
nem era ainda sonhada.
Tanto
São Paulo quando o Rio somente tinha o Santos Dumont e o Congonhas. Se quisessem
encontrar algum figurão era ali onde trafegavam os aviões Lockheed L-188
Electra. Ótimos aviões. O Santos Dumont era menorzinho, com uma pista que tanto
no pouso quanto na decolagem exigiam atenção por parte dos pilotos e
tripulação. Não existia ao acréscimo que hoje lhe foi feito, nem a ponte
Rio-Niteroi existia. A ponte aérea Rio-São Paulo era o mimo. Pessoas
trabalhavam em S.Paulo e Rio eram consideradas chiques.
Bons
tempos aqueles!
Aos
fatos.
Davi
Nasser, escreveu um pesado artigo contra Leonel Brisola. Coisa de parar a
imprensa. Assunto escabroso, na linguagem mais pesada que se usava na época. Eu
não me lembro, mas era acachapante.
Brisola
jurou que, quando encontrasse Nasser,
fosse onde fosse, dar-lhe-ia um murro igualmente de estourar os miolos.
Passados menos de um mês Brisola vê Nasser no meio da
multidão de embarque do Santos Dumont. Rapidamente, sem diálogo, sem uma troca
de xingamentos vai rumo a David e, com toda força, estoura-lhe um murro no
rosto onde dois dentes caem-lhe da boca e ele desmaia. Naquele tempo os homens
eram ainda assim. Restava um pouco de virilidade. Nasser foi hospitalizado e
Brizola, fagueiro e feliz foi para o Rio Grande.
Nasser
na próxima sexta feira escreve um artigo pior ainda sobre Brizola com o título
COICE DE MULA e publica. Mas a raiva de Leonel já se havia desfeito. Consta que
David, até o fim da vida, guardou os sinais do “coice de mula” no rosto.
Este
nome do artigo fez-me lembrar de outros tempos, vinte anos atrás.
Também
levei um coice de mula sem aspas. Real. Sem pena.
Aproveitando
a paciência do leitor vou contar.
Tendo
comprado uma propriedade rural em uma região serrana, entrei logo em discussão
com um dos vizinhos. Ele queria, na marcação imprecisa, que a fazenda dele
chegasse até uma linda cachoeira no meio de minha propriedade.
Mas,
para tirar dúvidas, fomos lá no local.
ESTA A CACHOEIRA DA DISCÓRDIA
Compensava “brigar”.
Ele sugeriu que subíssemos a serra.
Ele a cavalo e eu a pé.
Não desisti. Não podia desistir:
--Vamos.
Ele cavalgando uma mula ajaezada e eu
a pé.
Eu já sabia, tinha experiência de
outras empreitadas, de ir segurando a calda do animal. Já utilizara o método em
Goiás.
E assim fomos. O animal com ele
montado, eu segurando firme na calda, sendo arrastado aos trancos e barrancos
pela forte mula.
Uma hora - talvez um
pouco menos - e chegamos ao pico de onde
víamos toda fazenda em baixo.
A mula, que na subida não reagira,
pois se o fizesse ela mesma cairia encosta abaixo, quando chegou no plano dá um
coice que pegou em minha perna na parte mais alta. Caí longe. O coice pegou na
coxa, próximo a minha genitália. Um local perigoso, mas firme. Na canela
quebrava-me a perna, no estômago moeria as entranhas, no peito afundaria minha
caixa torácica.
Não conversamos mais. A cachoeira era
minha e nem o vizinho falou mais disso. Daí para diante a conversa seria a
bala. Desci só, em silêncio, mancando da serra.
Até hoje tenho a marca do coice.
A vida é mesmo assim. Alguns por
muitos, outros por pouco, mas sempre levam seus coices.
J. R. M. Garcia
<martinsegarcia@uol.com.br>