quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

MEU TIO PACÍFICO (CRÔNICAS E CONTOS)

                                                      MEU TIO  PACÍFICO 


            

            

                Prometi a minha filha uma crônica alegre.

                Fico aqui sem nada ter a escrever.

              Da minha vida posso, talvez, narrar algumas circunstâncias divertidas. Mas isso não seria bem interpretado. Fica com sabor de narcisismo.

Tá, lembrei.

            Tive um tio, falecido há muitos anos. Até no nome dele era contraditório com a vida e ânimo que tinha pela existência : “Pacífico Garcia”. Na verdade ele era violento, brigão, sempre armado, pronto a não levar desaforos para casa. Diziam que era corajoso, o que corrobora com as funções que os juízes e c nomeavam-no em autos, para que ele realizasse as diligências em locais ermos, partes propensas a confundirem oficiais da justiça com a raiva que possuíam pelas partes. Geralmente estas diligências terminavam com troca de tapas e com alguma violência branda. Ele as cumpria sozinho. Não gostava de companhia. Em festa tinha por habito dar tiros para cima. Não o qualificaria como um bandoleiro. Isso não. Talvez dar-se-ia bem em um bando organizado como o de Lampião. Curioso, sabia escrever com linda letra, fazia poemas e grafava em cadernetas. Bebia esporadicamente fora de suas atividades laborais. Vivia de trabalhos esporádicos, como cobranças a pessoas de gênios difíceis.

        Para se ter uma deia do temperamento deste meu tio, veja-se abaixo.

      No comércio que faziam antigamente, entravam para o interior, com dúzias de canastras. Estes mascates faziam o trajeto passando pelas vilas e povoados, vendendo suas mercadorias nos menores e inacessíveis lugares deste país. Quando vendiam era a prazo e, quando voltavam recebiam bens para serem vendidos nas capitais, nas cidades grandes, como açúcar mascavo, carne seca de gado, fumo, bebida como aguardente e coisas afins. Estas permutas eram demoradas e pacientes, pois todos os dias tinham que dar comida as mulas e burros e, as vezes, detinham-se dias pelas enchentes de chuvas demoradas. E todos os dias faziam a “boia” para as refeições dos retireiros, membros da comitiva. As estas comitivas dava-se o nome de “cometas”, como a lembrar o caminho das estrelas os quais muitas vezes utilizavam.

            Em um últimos destes cometas meu tio embarcou para Ouro Preto, junto com a comitiva. Em troca ele anotava os créditos e débitos do chefe totalmente analfabeto; lavava talhes da cozinha; ajudava a cuidar da tropa de cavalos; zelava nos turnos noturnos contra onças e outros carnívoros; pastoreava o gado, praticando serviços gerais ajudando a descarregar as canastras.

            E Pacífico sumiu. Um ano. Dois, até que alguns amigos seus foram à paróquia vizinha consultar o vigário. 

               ---O senhor a de sabê, que Pacífico morreu, num é padre ?

               ---Não. Não sei não. 

               ---É . Mais ele morreu sim. 

               ---Não sei. Querem que eu vá lá encomendar o defunto ?

               ---Num sinhô. Nóis qué enterrar ele nu cimitério. 

               ---Sem o defunto nada feito. Não podem enterrar o que não existe, ora. 

               ---O difunto inda num ixiste, mais já tá morto.  

               ---Num deixa, né ? ! Tá bão. 

                    E foram embora. 

            No cemitério, cercaram uma cova com o seguintes dizeres.


                                            PACÍFICO  GARCIA 

                   ELE NUM TÁ AQUI. NOIS TÁ ESPERANO O DIFUNTO.  

         O padre desistiu e compreendeu.

         E Pacífico apareceu. Surgiu como havia ido. De Ouro Preto ele foi ao Rio de Janeiro e, por lá, viu tudo que poderia ver por quase um ano. Conheceu o mar. Nadou nas suas águas azuis. Namorou. Comprou roupa. Teve propostas de emprego desde garçons até secretário e guarda costas para autoridades do judiciário, já que aqui cumpria mandatos perigosos. Dizem que passou um ano contando as estórias que vira na viagem e no Rio. Era como se fosse um conferencista caboclo.                                                            

            Da última vez que o vi, eu tinha treze anos mais ou menos. Ele  estava muito velho, sentado em um bazar tomando um gole de pinga. E em caráter confidencial ele perguntou-me sobre que assunto era este, o qual diziam ter a Rússia lançado no espaço um foguete. Fiquei surpreso que ele pudesse interessar por este assunto.  Confirmei que de fato era esse o assunto. Ele pensou, pensou e voltou de novo na pergunta com mais confiança: “Me diga um troço aqui. E se isso de foguete escapar lá de cima e bater na cabeça da gente aqui ? “Ri e fiquei espantado com a dedução dele. Quando lhe disse que a coisa tinha um pouco mais do que o tamanho de uma bola de futebol, ele deu gargalhadas e disse: “Então isso é besteira. É um foguetão só. Que besteira! Vamos comer, senão sua mãe vai ficar braba comigo.”

            Nunca mais o vi. Informaram-me que morreu dormindo 

J. R. M. Garcia